Cresce a oferta de vinhos de envelhecimento biológico na Argentina

vinhos de envelhecimento biológico

Há cinco anos parecia algo impensável: falar de vinhos de envelhecimento biológico ou vinhos de flor (já veremos o que são) era patrimônio de algumas regiões reputadas do mundo, como Jura (território vitivinícola localizado em Jura, na França, que fica perto da fronteira com a Suíça) ou Jerez (também conhecido no Brasil como Xerez, por ser original de Marco de Xerez, o território vitivinícola onde se produz esse vinho típico da Espanha). E na Argentina essa possibilidade era encarada mais como uma quimera que uma realidade. Hoje, no entanto, alguns enólogos e suas garrafas estão recuperando uma velha tradição e abrem um caminho que se reflete em vinhos de flor.

Velha tradição, vale destacar, porque a Argentina é um país de imigrantes cuja população conforma um caldeirão de raças que, com naturalidade, manteve em sua origem costumes europeus, como o preparo destes vinhos, com marcas como Crotta, El Abuelo, López e Hangmann.

Vinhos de envelhecimento biológico na Argentina 

Quando falamos de vinhos de envelhecimento biológico ou de vinhos de flor nos referimos, em geral, aos brancos elaborados mediante uma técnica ancestral que promove a formação de um véu de leveduras e fungos, chamado “flor” devido à fina camada que se forma na superfície do vinho. 

Isto lhe confere um estilo único e inconfundível de vinho seco, pungente e complexo. Esse caráter é o que distingue os Manzanilla jerezanos, por exemplo, e hoje é possível encontrá-lo também em alguns vinhos argentinos.

A novidade fica por conta das incursões artesanais de enólogos –alguns renomados– atraídos pelo exotismo dos vinhos de envelhecimento biológico. E nos últimos anos eles foram realizando experimentações nesse sentido para dar mais complexidade aos seus brancos, como é o caso de “El Enemigo Chardonnay”, do enólogo Alejandro Vigil ou, em menor escala, para produzir vinhos 100% sob véu de flor.

Vinos de crianza biológica

Os pioneiros da flor

Entre os que iniciaram a moda dos vinhos de envelhecimento biológico está David Bonomi, atualmente responsável pela direção enológica das vinícolas Norton, que foi quem começou a tendência em 2014, fazendo experimentos através de seu projeto “Per Se” junto ao agrônomo Edgardo Del Pópolo (Diretor de agronomia da vinícola Susana Balbo). 

Pequena vinícola de excelência –recentemente obteve 100 pontos da Wine Advocate no vinho “Per Se La Craie 2018” –, este ano eles produziram “Volare de Flor”, um dos melhores expoentes do mercado, eleito por Josep Roca para a adega do famoso restaurante El Celler de Can Roca.

Mas nenhum movimento se consolida apenas com um único vinho. Seguindo o norte da flor, alguns winemakers começaram de maneira acidental ou espontânea, já que seus véus se geraram por descuido ou esquecimento de algum barril e sem querer se desenvolveram favoravelmente, graças às excepcionais condições sanitárias das uvas que oferece a região de Cuyo. 

Foi o caso de Juan Pablo Michelini (Bodega Alter Uco), Eduardo Soler (La Cayetana e Ver Sacrum), Matt Berrondo (Finca Anguita), Gabriel Campana (Terra Camiare) ou Pablo Marino (Berracos e Solo Contigo), que descobriram e logo cuidaram da flor em algumas de suas barricas.

Para Michelini, por exemplo, o véu apareceu de forma espontânea em seu blend “Altar Uco” por deixar duas barricas incompletas. A esse respeito, ele explica que as condições para o desenvolvimento da flor são complexas: 

“É preciso que todos os planetas se alinhem: conseguir uma safra muito saudável, realizar uma elaboração impecável e suave sem intervalos de fermentação e  manter o envelhecimento com muita umidade, bem como evitar abrir o tampão para que a flor não se contamine”, explica.

Uma vez que a flor se formou em suas barricas, ele aprovou a complexidade aromática e a elegância que brindaram, algo que não seria possível atingir exceto com muito tempo de guarda em garrafa. Tanto que logo elaborou outro vinho de flor junto a José Luis Miano, um Pedro Giménez engarrafado como “Amansado”.

Criar o véu

O clima de Mendoza ou de San Juan ajuda, por suas boas condições naturais para os vinhos de envelhecimento biológico. E a possibilidade de utilizar poucos agroquímicos e enxofre na vinha permite maior proliferação de leveduras nas uvas, que resultam mais vivas e em maior quantidade. 

Por esses motivos é que a flor pode se desenvolver em alguns vinhos. O negativo é que isso ocorre pela secura do clima, que limita, por outro lado, o desenvolvimento da flor nos vinhos. Em todo caso é possível controlar essas variáveis umidificando na adega.

Eduardo Soler, proprietário de Ver Sacrum, está acostumado a usar algum componente de flor em seus vinhos, tanto em seu consagrado Geisha de Jade como na linha La Cayetana, na qual vai envasar um Pedro Giménez de flor em garrafas de meio litro. 

Em sua experiência, para a formação do véu é chave “o tamanho da câmara de ar em relação ao volume do vinho, tanto como o tamanho do recipiente e a umidade do lugar de envelhecimento”. Também indica que a altura influi na espessura e na cor do véu: “Em Gualtallary costuma ser mais fino e esbranquiçado”, diz.

Distinto ocorre na Finca Las Moras, vinícola de San Juan pertencente ao Peñaflor, o maior grupo de vinícolas da Argentina. Resgatando a tradição dos generosos vinhos de San Juan, Eduardo Casademont, enólogo da marca, conta que lhes pareceu “interessante trabalhar com flor para fazer algo diferente com os vinhos brancos”. 

Foi assim que criaram as condições para consegui-la em 2017, tendo realizado sete engarrafamentos, e em alguns casos a utilizaram para acrescentar complexidade a outros vinhos brancos e blends de altura do Valle Pedernal como “Pedrito”, o branco 100% flor, também elaborado com Pedro Giménez, que Casademont considera parecido ao Palomino espanhol.

Todos os enólogos consultados comentam sobre uma inspiração jerezana, apesar de que não podem nem tentam se comparar aos vinhos espanhóis de Marco de Jerez, e dizem que o fazem sem copiar estilos nem receitas, mas sim tentando respeitar climas, solos e variedades de uvas disponíveis na Argentina.

150 litros com véu

Se o véu reconhece distintas escalas e intenções, o caso de Matt Berrondo é uma completa síntese. Desde 2016 desenvolve o véu e está por lançar um vinho chamado “Envelado”, resgatando uva Pedro Giménez de uma região esquecida de Maipú, chamada Corralitos. 

Matt lembra que, em 2018, separaram apenas 150 litros em um recipiente e o deixaram guardado em condição de adega em um salão de adobe. “Oito meses depois tinha um véu distinto, em lâminas, com aroma de nozes, amêndoas, mel e livre de acidez volátil, já que as leveduras tinham se alimentado dela”. 

Hoje eles conservam essa bota pura e estão contaminando outras barricas de 160 litros. Este ano eles prepararam uma segunda barrica de 225 litros para ter outra matriz que lhes permita começar a armar um sistema de solera.

Artesanais nesse nível são a maioria destes empreendimentos, que enriquecem a diversidade da cena local do vinho, enquanto geram um movimento entusiasta, inovador e não isento de riscos, já que os véus costumam ser muito frágeis. 

Inclusive, um dos grandes inimigos do véu é a sismicidade da região: uma única onda produzida por um tremor poderia refletir na barrica, fazendo o véu afundar e se desfazer já que, a rigor, ele cresce sobre o vinho alimentando-se dos vapores que emana. 

No entanto, nada parece poder deter os enólogos que, motivados, produzem “flor de vinhos”, como se diz na Argentina quando algo é admirável ou espetacular. É claro que, de fato, são vinhos de flor. E a tendência do vinhos de envelhecimento biológico cresce.


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