Referencial indiscutível da coquetelaria argentina, Inés de los Santos cresceu em uma casa feminista. Filha de uma psicanalista especializada em violência doméstica, desde muito cedo “o mundo dos homens” foi um assunto de conversas em sua casa. Por isso, ela diz, apesar da pergunta recorrente de “por que você foi trabalhar numa área dominada por homens” sempre lhe provocar um aborrecimento, ela entende que é um tema que ainda é necessário abordar. “Você nunca sabe quem está lendo a matéria, o que precisa ouvir, o que lhe falta”.
Inés de los Santos hoje comanda o celebrado CoChinChina, que é ao mesmo tempo um bar (na parte de baixo) e um fine dining (batizado de “Arriba”) com menu harmonizado. No último dia 17 de outubro, o CoChinChina foi colocado na posição 26 do ranking do The 50 Best Bars. Ela compartilha, também, com sua amiga Narda Lepes, o delicioso Kōna, um restaurante de inspiração japonesa no bairro de Belgrano, na cidade de Buenos Aires. “Narda e eu temos diferenças, mas somos muito parecidas em uma coisa: a sinceridade. Eu a admiro, sei que todas as decisões que toma são as corretas”.
A seguir, vamos revisitar a carreira da Inés de los Santos e o diálogo entre vinho e coquetelaria que é – também graças a ela- cada vez mais sólido.
Entrevista com Inés de los Santos
Como é, num país como a Argentina, sustentar uma carreira como a sua?
Custoso. Quando comecei era o pior contexto: não tinha Google, não havia diversas ferramentas, não existia Internet, não havia muitos livros especializados. Eu não sabia inglês, não tinha uma taça para Martini, não tinha uma coqueteleira. Não havia Amazon, não tinha nada. Quase nem havia bares! Os bares desta época eram, sei lá, o Claridge, um lugar que eu não podia pagar para frequentar. Mas eu sempre gostei de desafios. O primeiro que encarei foi ir para os Estados Unidos. Fui aos 18 anos. Perguntei: “O filme dos coquetéis, do Tom Cruise, onde é?”. Em Nova York. E eu totalmente iludida!
Não cumpri meu sonho americano, fiquei lá durante quatro meses, fazendo o que podia.
Depois foram surgindo outras oportunidades, o mundo começou a mudar, a coquetelaria e os bares começaram a ficar na moda. E eu estava ali pronta esperando.
O meu primeiro trabalho atrás de um balcão foi no El Gran Bar Danzón, como chefe de bar. Isso aconteceu comigo porque eu estava me preparando para essa oportunidade há anos. Me deram a chance, eu agarrei com unhas e dentes e fiquei por lá durante oito anos.
O que a coquetelaria e a gastronomia têm para que você diga: é isso, vale o esforço?
A gastronomia precisa te seduzir, do contrário não vai durar na sua vida. Eu sou filha de psicanalistas, me analiso desde que era criança. Lembro de ir na terapia e o meu psicanalista – um número um da área – me dizer: “Não tem problema que a sua vida seja o trabalho”. E eu respondia: saio do trabalho e falo de trabalho, me levanto e falo de trabalho… E ele me respondia: “Deixe de se castigar, se isso é o que você mais gosta de fazer”.
É uma vida dura, mas apaixonante. E, sobretudo, tem o aprendizado. Nós aprendemos o tempo todo, porque na coquetelaria nada é sempre igual. E isso é alucinante.
Hospitalidade & paixão
A palavra hospitalidade virou moda no mundo da gastronomia e da coquetelaria…
Hospitalidade é uma palavra enorme. Acho que atualmente tem a ver com se colocar no lugar do cliente, decidir qual deve ser a estampa do tecido de uma cadeira, porque se senta e o que prefere; experimentar sentar nas mesas para ver como a luz chega e como pega o reflexo da lâmpada. É fazer todo o percurso desde que vão no aplicativo e fazem a reserva até que terminam de comer e vão para casa. É se colocar no lugar do cliente e entender o que ele sente.
E, apesar de ser uma área que continua na moda e segue crescendo, são poucos os nomes que conseguem se destacar, tanto na Argentina como no mundo.
É um pouco de tudo, né? A paixão, a aprendizagem, o profissionalismo, a vontade e o talento. Porém nem sempre tudo isso dá certo. Eu olho para a minha carreira e nem sei como consegui chegar até aqui. Quando a pandemia aconteceu, eu tinha um projeto no lugar onde agora eu vou na academia. Não foi possível continuar porque era um primeiro andar, tinha um elevador pequeno, não tinha área ao ar livre. Meu sócio me ligou no primeiro mês – a meados de abril de 2020 – e me falou: “Eu tenho um imóvel, você não vai gostar, fica em Palermo, mas tem as dimensões ideais”.
Eu fui ver o imóvel e decidimos abrir o CoChinChina nele. No dia em que íamos abrir, já em 2021, o governo voltou a decretar o lockdown por 15 dias. E depois só era permitido abrir aos sábados e domingos na hora do almoço, das 11h30 às 4 da tarde. Eu nunca imaginei que seria de dia, mas pensei “qual o problema de abrir de dia, é o que dá pra fazer por enquanto”.
Nunca em minha vida vendi um drinque de dia. E na primeira comanda, por incrível que pareça, vendi um Old Fashioned, às 11h30 da manhã. E nós choramos. Era uma alegria poder sair de casa, se encontrar, ver as pessoas contentes depois do longo lockdown que ocorreu na Argentina. E quando a pandemia passou, o rock começou… porque nós abrimos de noite.
Na parte de cima ia ser uma boate para dançar, mas tivemos muitos problemas com os vizinhos por causa do barulho, então eu decidi: “vamos fazer um fine dining”. A partir da experiência com o Bardo, um ciclo que eu tive onde promovia eventos com base em harmonizações, tinha várias ferramentas e as usei para fazer um menu nesse mesmo estilo, com coquetéis, com vinho, outro sem álcool e se o cliente não quiser o menu harmonizado, ainda pode escolher outros pratos diferentes.
Harmonização
Qual era a sua relação com a harmonização até então?
A carreira de sommelier me ajudou muito a entender o vinho e o pairing, que é algo muito importante. Uma comida pode prejudicar o vinho, ou um vinho pode estragar uma comida. Exatamente a mesma coisa acontece na coquetelaria. O mais legal é que você pode preparar um coquetel ad hoc de um prato. Provando o prato e possuindo as ferramentas, conhecendo os ingredientes…
Esse é o trabalho de sommelier, conhecer os vinhos do mundo e ir arquivando informações, se preparar o tempo todo para entender, porque o vinho muda todos os anos. Então é preciso saber o que acontece com este ingrediente tão maravilhoso. A coquetelaria é similar, mas é de momento. É verdade que o limão não é igual todo ano, o morango, os whiskys também não são iguais.
Mas um coquetel é aqui e agora, eu o preparo com os ingredientes que tenho hoje. Você tem essa precisão, que talvez o vinho não permite. Até poderia ter, mas talvez seja mais caro. Então, quando armei a harmonização, pensei: se este prato vai bem com um iogurte, e este outro com uma cerveja, vai ser assim. E é assim.
Em algum momento o vinho estava mais segmentado para um público e os drinques para outro, não havia um diálogo fluido. E você é em parte artífice desse diálogo entre ambos. Como fez isso?
Primeiro, o Danzón sempre foi muito a favor do estudo, que o pessoal se capacite, eles nos ajudavam a crescer. Não tem uma Harvard da coquetelaria, então validar a profissão é complicado. Talvez a carreira de sommelier te dê certas destrezas, além do conhecimento. Então quando você começa a entender de vinho, as qualidades de cada variedade, de cada região vitivinícola, começa a perceber que tem um ingrediente fantástico que abarca um monte de diferenças.
Mas quando você entende as variedades, você tem um monte de ingredientes. Isso eu entendo e sempre usei. Segundo: o ano 2001. Em 2001 nós ficamos sem ingredientes, não havia bebidas porque o país se fechou para a importação. E tudo o que havia disponível era de má qualidade. Mas como o dólar disparou, a gastronomia estourou, o país foi invadido por turistas.
E a gente falando para eles “não, não tem isso, não tem aquilo”. Aí de repente um dia, arrumando o balcão do bar, vi todas as torneiras de vinho que tínhamos e falei: “É isso! Um wine bar! Temos que fazer um menu de coquetéis à base de vinho”. E com isso nos salvamos. A desgraça me traz sorte (risos), me coloca em um lugar em que é preciso resolver.
Hoje faço outra coquetelaria que eu curto muito – é uma piada interna que me faz rir sozinha – a de “tocar o vinho”. Que não seja um Negroni com vinho branco: eu quero que o vinho branco seja o protagonista. Então busco vinhos com muito caráter e vou fazendo trocas. Na harmonização também é preciso dosar a proporção alcoólica. Sempre tento que seja similar à de um vinho; o recurso de fazer alguns passos com vinho transformado em coquetel ajuda também para que o cliente prove todo o menu.
PH: Martín Piccinati
Você vê mudanças na relação do consumidor com as bebidas?
O consumidor avançou demais com os conhecimentos disponíveis hoje em dia. Quando eu comecei, coquetel era uma palavra tabu, era encarado como uma forma de mascarar uma bebida ruim. Quanto ao vinho, hoje se sabe muito: a temperatura, a taça, o momento de tomar tal ou qual vinho! Hoje ele está presente em todas as casas. As adegas próprias para os vinhos já não são uma raridade. E a comunicação influenciou muito nisso.
A comunicação e pessoas como esta (aponta a sua sócia Narda Lepes), que se dedica a comunicar, e os programas de televisão, as feiras, as revistas especializadas, as aulas que damos. Quando eu vou na Vinexpo e percebo que conheço todo mundo, penso comigo… “estamos fazendo algo errado”. O que nós fazemos, sem o consumidor, não tem nenhum sentido. Se você não divulga o que faz para gente nova, a magia se corta.
O seu marido trabalha com vinhos. Você se imagina elaborando vinhos no futuro?
Sim, com certeza. Agora fiz alguns vermutes, mas o próximo passo é o vinho. Eu adoraria. Estive em Mendoza no começo do ano, fui na La Estocada, sou muito amiga do Matías Michelini. Estive lá, na vinícola, passei a noite, me levantei e falei: “tenho que fazer vinhos”.
Você se imagina indo para algum lugar em particular?
Eu quero fazer vinhos brancos. Disso eu tenho certeza. É branco. Gostaria de me aposentar em Mendoza, ir morar lá quando fique mais velha. Então percebo que tenho que começar esse movimento, tenho um longo caminho pela frente.