“As vinhas formaram um espaço onde a mulher abriu caminho à força do amor, do trabalho e da decisão. Sob a sombra fresca dos parrais de moscatel e uva negra; junto a barricas de vinhos e aguardentes; entre lagares e bodegas, a mulher se sentiu motivada para derrubar barreiras, criar espaços de liberdade e decidir por si mesma. O cenário vitivinícola resultou particularmente amigável para a mulher. Ela sentiu que, lá, as assimetrias não eram tão pronunciadas como nas regiões apoiadas em outros modos de produção. Apesar de que as pautas tradicionais que limitavam seus acessos à economia, à política, à cultura e à vida social se mantinham vigentes, algo havia no cenário vitivinícola que levava a mulher a pensar que, no caso de se rebelar, teria certas possibilidades de sucesso. Por isso tentou e, muitas vezes, conseguiu”.
O pesquisador Pablo Lacoste publicou “La mujer y el vino: Emociones, vida privada y autonomía económica entre el Reino de Chile y el Virreinato del Río de la Plata (1561-1810)”, um livro no qual analisa esses séculos de relação apaixonada. Duzentos anos depois do período estudado, suas palavras acabam validadas pela realidade atual e ganham novos sentidos.
Há décadas, de fato, as mulheres deixaram de ser notícia no mundo do vinho argentino. O país registrou sua primeira enóloga em 1981, quando Susana Balbo obteve o título de Licenciada em Enologia. Claro que até o final do século passado era pouco habitual que uma mulher fosse a responsável por uma bodega ou desempenhasse o papel de winemaker. Mas tudo mudou graças ao esforço das pioneiras, e as gerações jovens sabem disso. “Tive sorte porque muitas mulheres enólogas e agrônomas já tinham aberto o caminho da liderança feminino na indústria. Por isso nunca senti que por ser mulher deveria me esforçar mais”, admite Rocío García, enóloga da Bodega Sottano.
Sua colega, Bernardita Gil, da Bodega Renacer, concorda: “Hoje há muito mais equidade, a tal ponto que a maioria das equipes enológicas são integradas por pelo menos uma ou duas mulheres”.
O fato de que haja cada vez mais mulheres em cargos estratégicos também faz sua presença crescer nas bases. Desde 2012, Andrea Ferreyra é chefa de Enologia de La Celia e usa esse lugar privilegiado para promover a incorporação de suas colegas: “Nesta vindima 2021, tivemos muitas enólogas recém-formadas ou estudantes avançadas fazendo trabalho de bodega, enquanto antes as atividades das que começavam como júnior eram só em laboratórios ou como assistentes”, conta.
Mas o que acontece do lado de fora da bodega? Que impacto esta expansão feminina tem na indústria sobre o olhar social de inclusão das demais mulheres?
A união faz a força
Dentro da cadeia de produção, houve quem percebeu que podia ter uma organização horizontal que as apoiasse e acolhesse. Por isso, uma grande quantidade de mulheres da indústria começou a se juntar em diferentes grupos, como o Clube de Mulheres Profissionais do Vinho, que já tem 110 integrantes.
“É um grupo de encontro. Trazemos informações úteis, tiramos dúvidas e nos ajudamos muito. Além disso, não funciona somente por Whatsapp: às vezes tem momentos de desfrutar, nos quais compartilhamos vinhos e conversamos”, conta Verónica Ortego, enóloga da Dartley Family Wines.
A informação que circula de telefone a telefone é quase toda técnica; consultas sobre fornecedores e insumos são feitas continuamente e questões normativas e de inovação, divulgadas. Elas crescem juntas.
“Como somos muitas, sempre tem alguém que responde quase na hora. Há alguns dias eu precisava de uns bins plásticos para a colheita e logo em seguida alguém me passou o dado. Todas estamos preparadas para ajudar”, detalha Constanza Gaitieri, enóloga e proprietária da Malpensado Wines.
Com outros ritmos, no Norte do país parcerias femininas também estão sendo formadas ao redor do vinho. Mas, nestes casos, as mulheres vinculadas à indústria se unem para se aproximar daquelas que não estão e ir eliminando os resquícios machistas.
“Na Quebrada de Humahuaca era concebido socialmente que só os homens eram bem vistos consumindo vinho”, conta Amelia Janko, que se encarrega da comunicação dos vinhos da Bodega Fernando Dupont. Convencida do conceito “o vinho une”, ela formou um grupo chamado “Las quebradeñas y el vino”, que é eixo de capacitações para degustações.
Nestes encontros, elas foram muito além do que as taças ensinam: serviram como vetores de todo tipo de preocupações de índole pessoal e familiar. Assim, as participantes catalisaram suas angústias e se sentiram em boa companhia enquanto se formavam.
Também nessa zona, outra agrupação feminina se propôs a aproximar o vinho das mulheres. Trata-se das “Comadres del vino”, conformada por Adriana Mattarollo, da bodega Tukma; Florencia Rodríguez, do restaurante Nuevo Progreso; Carolina Ruíz, da Bodega Don Milagro; Marisel Nazar, da bodega Cielo Arriba, e Inés Manghesi, da Viñas de Uquia.
Referências, elas realizaram ao longo de 2019 vários encontros que conjugavam vinhos de altitude com cozinha andina. “Tentamos acabar com esse preconceito de que a mulher só toma rótulos de colheita tardia, o que talvez aconteça porque não dão outra oportunidade para elas”, conta Mattarollo.
Neste ano, elas planejam dar um passo a mais. Orgulhosas das criações e do trabalho das mulheres coyas, procuram dar-lhes um espaço de visibilidade e aproximar oportunidades de negócios através de mudanças culturais. “O patriarcado do norte argentino é sustentado pelo matriarcado. Nos propusemos a fazer-lhes uma contribuição e dar-lhes ferramentas, como por exemplo conseguir um lugar para que possam vender os seus produtos”, acrescenta.
Ações para ajudar
Em outras regiões do país, diversas propostas têm um olhar inclusivo sobre a mulher e suas necessidades. A Fundación Bemberg e o Grupo Peñaflor, por exemplo, desenvolvem em Mendoza um programa de acompanhamento a Lares de Proteção Integral para mulheres e seus filhos que sofreram situações de violência doméstica.
Esta iniciativa é desenvolvida nas províncias de Mendoza, San Juan e Catamarca, e contempla diferentes aspectos: além de dar equipamento e melhorar a infraestrutura, o foco está em ajudar a que os lares consigam desenvolver um empreendimento para se autossustentar.
Dessa forma, oferecem oficinas de empoderamento nos quais temáticas como autoestima e emoções, entre outras, são analisadas e as mulheres recebem capacitações em ofícios que lhes permitem se desenvolver no trabalho.
Na mesma província, a Familia Zuccardi implementa um programa para ajudar mulheres que moram nas zonas próximas das fazendas e estão desempregadas. Trata-se de duas oficinas de costura, uma em Santa Rosa e outra em Maipú, onde aprendem o ofício; depois, vendem suas criações, aventais e guardanapos, para a própria bodega e também para outras.
Desde o ano passado, Susana Balbo Wines leva adiante a campanha “Outubro Rosa”: durante esse mês, cada venda do Críos Rosé de Malbec arrecada fundos para a ONG FundaVita, que trabalha na prevenção do câncer e no acompanhamento de pacientes oncológicos.
“A campanha começou em 2017, no Brasil, porque o importador a propôs. Não tivemos nem que pensar, era perfeitamente compatível com nossos valores. Por ser uma bodega fundada por uma mulher, sentimos o compromisso de apoiar temáticas relevantes para elas”, conta Ana Lovaglio Balbo, Gerente de Marketing da bodega. Atualmente, elas trabalham para ampliar o programa e levá-lo para outros mercados chave, como os Estados Unidos.
Muita coisa mudou em termos de relações interpessoais e sociais desde a época da colonização. No calor dessas mudanças, aquele amor original que então ligava as mulheres e os vinhedos cresceu século após século até adotar, nos dias de hoje, arestas cada vez menos afiadas, menos ásperas, mais inclusivas, mais arredondadas. É nas curvas, por excelência femininas, que reside a continuidade do vínculo com o vinho.