Quando um terroir chega na boca dos consumidores? Quando completa um ciclo histórico, quando seus vinhos dão o que falar e quando nas taças se percebe esse algo a mais próprio que o torna diferente. Tudo isso se encontra hoje no Valle de Pedernal, localizado na pré-cordilheira de San Juan, na Argentina. E é um saber precioso de produtores e dos bebedores de paladar apurado.
Situado entre duas cadeias montanhosas bem diferentes – ao oeste, a Sierra del Tontal e ao leste, a de Pedernal – é um vale clássico: aberto à vista, mas fechado entre montanhas. Essas duas barreiras definem uma geografia e uma realidade própria de terroir.
Falamos de geografia porque o valle de Pedernal chega a uma média de 1.400 metros de altitude. Essa característica dá a San Juan uma condição de frio para os seus vinhedos, que contrasta amplamente com o que acontece na parte mais baixa da encosta, a uns 600 metros. ¿Quanto? Se considerarmos uma média, no Valle de Pedernal há uns 8°C a menos que na planície.
Assim, em plena etapa de maturação, a região não supera os 28 graus, com noites notavelmente frescas e dias extremamente luminosos. Nas palavras de Marcelo Belmonte, diretor da viticultura de Peñaflor, “O Pedernal é um vale pré-cordilheirano de clima temperado frio, onde se acumulam aproximadamente 1.600 graus-dia, com importantes amplitudes térmicas durante todo o ciclo vegetativo de aproximadamente 15°C, alta radiação ultravioleta e com temperaturas no mês prévio à colheita de 10°C. Este clima frio ocasiona uma maturação tardia com temperaturas que caem notavelmente no outono e que permitem preservar acidez e aromas primários que são muito voláteis e que explicam a complexidade aromática e fineza dos seus vinhos”.
Belmonte adiciona: “Existem exposições ao oeste se os vinhedos estão situados nas encostas das Serras de Pedernal e exposições ao leste, recebendo mais sol da manhã nos vinhedos localizados sobre as encostas das Serras das Osamentas, variável que impacta no padrão de maturação das diferentes variedades. Há um diferencial nos seus solos pedregosos, calcários e com presença de limo que explica a estrutura e textura de taninos acompanhados por um excelente meio de boca”.
Geograficamente, tem outro componente porque as duas encostas em jogo, a que vai do Tontal ao leste e a do Pedernal ao oeste, além de exposições diferentes para os vinhedos, oferecem condições diferentes de solo. A primeira proporciona as famosas pederneiras, pedras laminares e sólidas que serviam para acender fogo em tempos remotos, dando o nome do vale. A segunda propõe solos calcários meteorizados a partir de rochas calcárias, segundo os estudos dos terroiristas Lidia e Claude Bourguignon.
“Até agora é o único lugar vitícola com essa condição na Argentina”, descreve Gustavo Matoq, agrônomo de Pyros Vineyard.
O único ponto crítico do valle de Pedernal é a falta de água, e por isso é preciso bombeá-la dos níveis muito profundos do lençol freático, ao que se somam geadas que, em todo caso, pelas vertentes pronunciadas afetam o coração do vale.
Esta união de fatores forma um tetris de combinações que revelam nas taças uma realidade própria, uma identidade. E com escala suficiente para conseguir um espaço no mercado: há uns 800 hectares plantados, cujos primeiros vinhedos datam de começos dos anos 1990, com a maior parte desenvolvida a partir da década de 2000. São cerca de 10 milhões de potenciais garrafas.
Os novos vinhos
Mas tudo isto não passaria de um manual de oportunidades se não fosse porque os produtores de San Juan, mas também de Mendoza, exploram a potencialidade estilística da região, empurrando os limites até uma identidade gustativa. Nesse sentido, neste insólito ano de 2020, chegou às prateleiras um vinho que será lembrado como um marco de fronteira para a região.
Elaborado com Malbec de solos calcários e com uma elaboração em 20% de carvalho novo, o Pyros Limestone Hill 2016 abre as portas de uma nova percepção para os vinhos da zona.
Já havia alguns indícios – tanto dentro do Pyros como na Fuego Blanco Flintsone Malbec 2017, Paz Cabernet Sauvignon-Cabernet Franc 2018, Vasparo Malbec 2018, La Linterna Finca “La Yesca” Parcela 13 Malbec 2014 e BenMarco Extremo Malbec 2018 – de que a região poderia desempenhar um novo papel em termos de estilo. Mas agora tem um norte claro e um parâmetro mais alto.
Para se ter uma ideia dos contrastes: enquanto os Malbec provenientes dos solos da Sierra del Tontal oferecem um perfil frutado e de ervas, com paladar encorpado e intenso, os da zona da Sierra del Pedernal oferecem rótulos mais austeros em aroma, igualmente gostosos em intensidade, com um paladar onde a textura de giz é a alma das sensações. Isso, quando as uvas não estão muito maduras.
Da mesma forma, deste vale são obtidos alguns Syrah de zonas frescas, em contraste com o resto de San Juan, como o próprio Pyros, somado a alguns brancos atípicos até agora em San Juan como o Gewüztraminer, ou a tensão e o volume de certos Sauvignon Blanc de altitude.
Nas palavras de Clara Roby, enóloga da Fuego Blanco, “aos 1.550 metros, onde estamos, a maturação é muito lenta, e por isso as variedades brancas, mas particularmente as Sauvignon Blanc, conservam uma acidez elevada e oferecem um perfil de ervas, com traços de arruda e tomilho”.
Nada disto era alheio aos produtores. O Valle de Pedernal dava uvas de alta qualidade desde que começou a ser plantado. A novidade, em todo caso, é que a região começa a oferecer um sabor próprio. E esse é o segredo para passar de ser uma promessa a uma zona com credenciais sólidas.